A GUERRA CIVIL EM ANGOLA (A Verdadeira História)

  • há 7 anos
Subamos então ao primeiro andar da associação, o estúdio onde trabalham Jorge Cohen, produtor do projecto Angola, Trilhos da Independência, e Mário Bastos, o realizador. O coordenador e mentor do projecto é Paulo Lara, general e filho de Lúcio Lara, que não poderá estar hoje para explicar o projecto. Deixou a tarefa a cargo destes dois jovens da Geração 80, o nome da produtora que trabalhou durante cinco anos no projecto que terminará este ano com um documentário que será estreado no dia em que se assinalam os 40 anos da independência, e que já tem título escolhido: Independência.

O desafio é transformar quase 900 horas de filme em 1h45. Mais do que isso, o objectivo é criar um documentário destinado aos jovens da geração deles e mais jovens que desconhecem quase tudo sobre este período da história do país. Depois, espera-os o longo trabalho de organização do material que vai estar acessível ao público, ainda sem data.

Mário Bastos constata que se há algumas pessoas, ex-combatentes e pessoas que viveram o período colonial, que falaram, pelo menos em família, desse tempo e do que viveram, outros nem tanto. “Muitas são memórias vividas mas não contadas.” “Se eu contar aos meus filhos que houve pessoas que comeram lama com jindungo [malagueta], eles vão achar que é mentira”, contou à equipa o guerrilheiro Miseraque Boa dos Santos, nascido em 1945.

Mas a razão porque muita dessa vivência ficou circunscrita à geração que a viveu tem, às vezes, que ver com o “não se dar importância de ter vivido um momento histórico. Foi mais uma guerra”, constata Mário Bastos.
Nos cinco anos em que decorreu o projecto, já morreram 20 dos entrevistados, a média de idades anda pelos 60-70 anos. A esperança de vida em Angola está calculada em 51 anos. Jorge Cohen e Mário Bastos dizem que cada notícia de morte de um entrevistado os lembra da urgência da tarefa, desta “luta contra o tempo”.

Uma das pessoas que morreram entretanto foi João Vieira Lopes, de quem foi recolhido o depoimento mais longo: 12 horas de gravação, quando a média é de duas horas, recorda o realizador Mário Bastos. Foi também, na opinião dos dois, um dos mais marcantes. Este antigo guerrilheiro fez parte da geração que, após concluir os estudos no liceu em Luanda, embarcou para Portugal para ir para a faculdade. Em Lisboa, foi presidente da Casa dos Estudantes do Império, criada para perpetuar a dimensão imperial do Portugal do Estado Novo, mas que acabou por ser um viveiro de dirigentes independentistas que chegaram ao poder nas ex-colónias. No seu testemunho, recolhido em 2010, conta como, depois do início da luta armada em Angola (a 4 de Fevereiro de 1961), foi um dos que planearam a fuga de estudantes africanos que viviam em Portugal. Falou da dificuldade “da selecção”, de escolher quem ia e quem ficava. “Uma boa parte de nós estava praticamente no último ano dos cursos superiores... Alguns de nós já tinham mulheres e filhos. Largar aquilo para um desconhecido... Era muita responsabilidade arrastarmos toda aquela gente para fora e depois o que fazer deles?” Em Junho de 1961, saem de Portugal cerca de 100 jovens das ex-colónias portuguesas, em duas acções que os levaram a atravessar o rio Minho e todo o Norte de Espanha rumo a França. Fez parte deste grupo, por exemplo, o ex-Presidente moçambicano Joaquim Chissano. O episódio ficará para a história como a “Fuga dos 100”.

Às entrevistas planeadas juntavam-se muitas espontâneas, de pessoas que conheceram nas viagens e que queriam contar as suas experiências. Quando chegavam às povoações (63% das entrevistas foram fora de Luanda), a equipa convocava memórias: montavam uma tela gigante onde projectavam imagens desse tempo. Era o chamariz. Percorreram de carro mais de 20 mil quilómetros.

De forma espontânea, surgiu também uma forma diferente de as pessoas darem a conhecer esse tempo: representações teatrais. “As pessoas não têm em casa fotografias desse tempo, os angolanos não tinham máquinas fotográficas.” Nos excertos de vídeos disponíveis no site do Trilhos, é possível ver recriações de combates de homens que foram guerrilheiros, e que agora são idosos, empunhando o que parecem ser paus de vassoura, a gritar ferozmente contra um inimigo passado. Mário Bastos explica que estas representações são “a forma de as pessoas transmitirem conhecimento. Fazer peças de teatro é como ter alguém que nos mostra uma foto e diz ‘isto era assim’”.

Em 671 entrevistados, mais de metade foram do MPLA, 105 foram da FNLA e 53 da UNITA. Os restantes foram de outras organizações ou pessoas independentes
Mário Bastos

Nesta amostra de entrevistados, estão ex-combatentes. Um, da zona do Mayombe, conta que a fome no mato os obrigava a comer até tartaruga, ou há quem descreva o andulo, vestuário feito a partir de casca de árvore, que os guerrilheiros faziam para se protegerem do frio no mato. Tendo a associação Tchiweka fortes ligações ao MPLA, o projecto conta com o apoio institucional do Governo de Angola.