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Francis Bacon - "As Figuras do Excesso"
Neste tríptico, criado em 1964, Bacon pinta três figuras na mesma sala, mas em telas diferentes: umas vão buscar poses à fotografia, outras à estatuária clássica. O que está a acontecer? Aparentemente nada. No entanto, esta pintura retrata um drama abstrato cujos motivos secretos ainda hoje têm uma estranha ressonância.
Transcrição
00:00Os Pincéis que Fizeram História
00:12Francis Bacon
00:14Acho que o homem sabe que é um acidente,
00:22que é um ser desprevido, sentido e muito fútil,
00:24que tem de julgar o jogo até o fim.
00:32Quando Velázquez ou Rembrandt pintavam,
00:37estavam de uma certa forma,
00:40fosse qual se fosse a atitude que tivessem em relação à vida,
00:44um pouco condicionados por certos tipos de possibilidades religiosas
00:47que o homem moderno viu desaparecerem totalmente.
00:54Agora, o homem só pode esforçar-se para fazer algo muito positivo,
01:06tentando eludir-se durante algum tempo,
01:08pelo modo como se orienta,
01:11prolongando talvez a vida graças a uma espécie de imortalidade
01:15que compra aos médicos.
01:16Toda a arte tornou-se agora um jogo
01:22com o qual o homem se distrai.
01:26E o fascinante é que isso vai ser bem mais difícil para o artista,
01:31porque terá de aprofundar o jogo
01:33para obter o que for bom.
01:36As figuras do Excesso
01:47Três figuras numa sala, 1964
01:53Francis Bacon, Dublin, 1909, Madrid, 1992
01:59Museu Nacional de Arte Moderno, Centro Jorge, Pompidou, Paris
02:03No centro, um homem nu,
02:16estendido numa espécie de canapé azul
02:18com base piramidal e amarela clara.
02:25À direita, um homem nu,
02:26sentado num banco com base circular plana.
02:32À esquerda, um homem nu,
02:33um homem nu sentado numa sanita
02:35com as costas voltadas para o espectador.
02:44Três painéis pintados a óleo
02:46com revestimento de plexiglass
02:47e molduras de madeira clara
02:49não têm data nem assinatura
02:50mostrados em várias exposições a partir de 1964.
02:54Foram comparados em 1969 pelo Estado francês.
03:01Bacon costumava revestir as suas telas,
03:03mas virava-as e pregava-as ao contrário.
03:06Trabalhava no verso,
03:07que ficava rígido e impremiável
03:09com o revestimento que tapava os poros.
03:12São visíveis os traços de um primeiro esposo leve a pincel.
03:15Os limites entre várias zonas coloridas são formados por finas bandas de tela deixada em reserva.
03:21Da mesma forma, em vários sítios, o pintor serviu-se da tela nua,
03:25como vôr cromático.
03:26Um espaço circular, quase regular, é definido por três zonas clúridas.
03:33Um eixo vertical central é sugerido pela ponta superior do canapé azul
03:37e pela barriga da perna da personagem.
03:41As duas personagens laterais estão à mesma distância do painel central.
03:45Estão inclinadas e formam assim uma espécie de curva em ogiva.
03:48Estes princípios de simetria simples encontram-se em muitos outros quadros,
03:53em telas individuais ou em conjuntos de vários quadros.
04:10Bacon pintava óleo, utilizava por vezes pastel.
04:14Não envernizava os seus quadros, mas apresentava-os sob vidro.
04:18Começava pelas personagens, muitas vezes lançando para a tela
04:23pigmentos misturados que manuseava em seguida.
04:27Utilizava pinceis moles ou grossos para os detalhes,
04:30o que o obrigava a trabalhar com pinceladas largas e arabescas.
04:34Ou então passava tecidos, escovas duras, esponjas sobre a pintura fresca.
04:40Assim obtinha estas redes de traços paralelos
04:43ou estas finas camadas de tinta transparente
04:45que baralhavam os traços das personagens.
04:47Os torciam e esticavam.
04:55Uma passagem com um trapo originou este raste de 15 centímetros.
04:59Junto ao joelho da personagem central,
05:01todos estes procedimentos provinham do que o pintor chamava a sua imaginação técnica.
05:05A gama de cores das três figuras é rica.
05:13O tom de pele é dado por misturas de cor de rosa, vermelho, alaranjado, azul, cinzento e escuro.
05:19Alguns brilhos vêm em contraponto.
05:22Branco da porcelana à esquerda, verde e alaranjado do acento à direita.
05:26O azul denso da poltrona delimita a figura no centro.
05:31As figuras contrastam fortemente com o fundo.
05:34Princípio geral em Bacon.
05:36Os tons dos três fundos provêm do mesmo pigmento.
05:39Terra de siena.
05:40Inicialmente puro e depois muito aclarado.
05:42A parte superior é plana.
05:49A parte central, certamente feita com a ajuda de um rolo muito felpudo,
05:52tem uma textura feita de pequenas asparezas pontiagudas, rugosas, que evocam a terra.
05:58Ou uma espécie de tapete de circo.
06:02Ao terminar a sua composição, Bacon ainda alterou.
06:05Juntando-lhe salpicos a espessos de tinta branca lançados ao acaso na tela.
06:09Estas camadas de tinta de 8 a 15 centímetros de comprimento afetam os membros das personagens.
06:16Noutros quadros posteriores, estes salpicos surgiriam também no espaço vazio, fora das personagens.
06:28No início dos anos 60, o pintor instalou-se num apartamento do bairro de South Kensington, em Londres.
06:34Uma divisão iluminada por um postigo servilho de atelier.
06:37Cada parede torna-se uma espessa e enorme paleta.
06:56Bacon deixa acumular todo o material de pintura.
06:59E pilhas de livros, páginas arrancadas, jornais recortados, postais, fotografias.
07:07As imagens mergulham nos montes, acabam por emergir um dia.
07:11Ficam algum tempo presas na parede, ligadas ou não a uma imagem mental que o pintor trabalha na altura.
07:15Sonho, leitura, recordação.
07:20Por vezes nas paredes também havia imagens dos seus próprios quadros,
07:40que inspiravam certamente o pintor a retomar os mesmos temas, ou os mesmos princípios formais.
07:45O estúdio que o Jucaus contrastava com a ordem rigorosa que reina nos quadros de Bacon
07:50foi, durante 32 anos, uma espécie de máquina de produção de novas ideias e de novas imagens.
07:56Um monte de adubo, segundo palavras do pintor.
08:04Bacon admitiu seu fascínio pelas imagens.
08:07Referiu ter olhado tudo e ter digerido tudo.
08:09Mas não tinha qualquer respeito pela fotografia enquanto arte.
08:14A negligência com que ele deixava as fotografias empilharem-se, caírem, serem pisadas,
08:18ilustra bem este desprezo.
08:23Por vezes o pintor antecipava elementos insólitos ou problemas.
08:26O perfil do presidente Wilson a sair da conferência de Versailles de 1919
08:37e o móvel do escritório de Trotsky, no México, numa foto de imprensa de 1940, logo depois de ser assassinado.
08:48Ou então servia-se de diagramas ou de esquemas num tratado sobre as posições da radiografia.
08:56Ou ainda encomendava a fotógrafos fotografias dos modelos que ele preferia em geral pintar na sua ausência.
09:10Henrietta Moraes, uma amiga graças a quem realizou alguns nus femininos.
09:19Lucien Freud, neto de Sigmund, e tal como Bacon, um pintor de renome.
09:23Freud, que foi o melhor amigo de Bacon, foi modelo de muitos quadros.
09:36George Dyer, uma espécie de menino mal comportado e origem humilde.
09:40Bacon conheceu a George em 1963, modelo preferido pintor,
09:44partilhou em parte a sua vida até à sua morte trágica, em 1971.
09:48Francis Bacon gosta dos retratos tipo passo obtidos nas cabinas automáticas.
10:09Joga com a possibilidade de multiplicar as poses,
10:11de deformar voluntariamente os traços, de multiplicar as sombras.
10:14A principal fonte de ideias para Bacon foi a obra de Edward Muybridge,
10:26um dos precursores do cinema.
10:28Nos seus trabalhos sobre a decomposição do movimento do homem e dos animais
10:31entre 1872 e 1887,
10:34Muybridge publicou centenas de painéis de fotografias.
10:38Bacon isolava as personagens da sua sequência temporal,
10:40desviava-as da sua atenção,
10:43dava-lhes outra energia.
10:48Segundo Maybridge.
10:56Duas personagens.
11:02Estudo do corpo humano.
11:04Bacon utilizava os efeitos da fotografia,
11:11o aspecto vago,
11:13as anamorfoses,
11:14a distorção,
11:15os efeitos de movimento ou de fuga,
11:17ou ainda sobreposições acidentais ou voluntárias,
11:19como tinham ilustrado os fotógrafos futuristas.
11:22A maior parte dos grandes quadros de Bacon mede um metro e noventa e oito de altura por um metro e quarenta e sete.
11:33O maior tamanho possível de uma tela que passasse nas escadas do ateliê.
11:39Consequência principal,
11:40a proximidade do espaço limitado sugerido,
11:42a sua pouca profundidade que força um espectador a integrar-se fortemente na cena que lhe é mostrada.
11:46As personagens de dimensões reais são como atores que representam perante falsas perspetivas.
11:57Portas, janelas, quadros, molduras, gaiolas, espaços circulares,
12:01estradas, móveis a servir de bases,
12:03e até sinais, setas, círculos, pontilhados que fazem convergir o olhar do espectador para a única preocupação de Bacon.
12:10A figura.
12:16Figure, em inglês, significa a pessoa, o ser, a forma humana, a personagem, mas também a imagem, a representação,
12:29ou então, a metáfora, a figura de retórica.
12:35Todos estes sentidos derivam de latim figura,
12:38que designava também as coisas moldadas, como por exemplo, argila.
12:42Em 1929, Bacon viu os quadros de Picasso, corpos, disformes, cabeças pequeninas,
12:50importância das bocas e dos dentes.
12:53Decidiu então pintar.
12:54Mais tarde, destruiria a maior parte dos quadros feitos nesta altura.
12:58Quando regressou à pintura, em 1944, foi com uma obra que expôs no ano seguinte numa galeria,
13:08e que chocou todos os visitantes.
13:11Três estudos de personagens juntam uma crucificação.
13:15Retomou um tema com contornos religiosos.
13:18O pintor inspirou-se no retábulo de Einstein de Matthias Grunhold.
13:22A violência expressiva da paixão é traduzida através destas figuras monstruosas,
13:27que parecem exprimir sobretudo o ódio, a voracidade, o pesadelo.
13:38Pintura 1946
13:39Mostra uma personagem que exibe um riso ambíguo,
13:43num cenário que associa bocados de carne, tubos metálicos, um guarda-chuva,
13:47um boi aberto, pendurado, que remete para o de Rembrandt.
13:52Uma figura perturbou durante muito tempo Bacon,
13:57o Papa Inocencio X, pintado por Velázquez em Roma, em 1650.
14:02De 1949 a 1962, Bacon pintou uma série de variações sobre o retrato.
14:07A poltrona dourada envolve e isola o busto do Papa,
14:25redobra o retângulo vertical do quadro
14:28e o espaço vermelho unificado ainda faz sobressair mais a fisionomia.
14:31É um dispositivo sonográfico semelhante que se encontrará na maioria dos quadros de Bacon.
14:44Personagens isolados num espaço vazio.
14:47Convulsões, espelhos deformantes, bustos, membros e cabeças torcidas.
14:53Bocas transtornadas.
14:55Traços descoordenados ao limite da deslocação.
14:57O que quer fazer é deformar o objeto
15:00e afastá-lo da aparência.
15:04Mas nesta deformação, devolver-lhe uma marca da aparência.
15:21As séries de quadros mais pequenos que Bacon pintam
15:23são rostos, retratos ou autorretratos, também eles em tamanho natural.
15:28Estão deformados, mas a semelhança é sempre mantida.
15:41Sempre me senti fascinado pelos movimentos e pela forma da boca e dos dentes.
15:47Digamos que gosto muito do brilho e da cor que vêm da boca.
15:55E sempre esperei poder pintar a boca como Monet pintava um pôr do sol.
15:59Mas nunca consegui.
16:07Durante uma estada na região das Santilli, o pintor ficou fascinado pela mãe
16:10que grita no massacre dos inocentes de Nicolás Poussin.
16:13Houve outras bocas que o marcaram.
16:23A da dama se cega de um olho, com um golpe de sabre
16:25na cena das escadas de Odessa do Coraçado Potanquin, de Eisenstein.
16:30Transportando o grito de horror da ama de Eisenstein
16:34para o rosto do Papa Sereno de Velázquez,
16:36Bacon criou uma dissonância plástica totalmente nova,
16:39como um esquecimento momentâneo que sacudiu a sua dignidade.
16:42O Papa, também efeminado e assustado, torna-se humano
16:47e, ao mesmo tempo, é assustador.
16:52Quero pintar mais o grito do que o horror.
16:57Pintar o grito não é o mesmo que pintar o horror, ou seja, o espetáculo.
17:01A própria cena que aterroriza a personagem,
17:03mas sim mostrarem imagens, uma força, uma sensação pura,
17:06uma luta contra esta ameaça de morte.
17:12A metamorfose plástica dos membros e dos rostos
17:17poderia remeter para as máscaras africanas
17:19que já tinham marcado os pintores cubistas.
17:25Bacon não mostra as várias facetas de um corpo,
17:28mas, ao mesmo tempo, a superfície, o volume e a carne aberta.
17:31O que está por fora e o que está por dentro.
17:34Os seus corpos sem pele fazem lembrar
17:35os grandes anatomistas da idade clássica
17:37que, em poses paradoxais, vivas,
17:40aproximam o revestimento carnal e as vísceras.
17:43Bacon afirmou sentir-se fascinado pelo balcão dos talhos.
17:48O talho, o matadouro, estão em locais escondidos,
17:51mas são necessários para a violência social.
17:54A carne aberta, seja dos suplícios ou da natureza morta
17:57em Rembrandt, em Chardin ou em Sotin,
18:00também é para os pintores uma miscelânea confusa
18:02e magnifica de cores raras
18:04e, ao mesmo tempo, uma vaidade,
18:06uma meditação sobre a carcaça humana.
18:08Esta abordagem anatómica dos enigmas do corpo
18:14resulta de um amor profundo pela escultura.
18:17Bacon sonhava dedicar-se um dia
18:19a realizar grandes esculturas montadas em carris
18:21e poder deslizá-las.
18:22Mas o gosto do pintor pela anatomia masculina
18:30encontrou um precedente em Miguel Ângelo,
18:32a quem pediu emprestado um pequeno catálogo de gestos.
18:34Primeiro as pernas cruzadas,
18:37posição que se torna de tal maneira repetitiva
18:39que parece estar na origem da dramaturgia secreta do pintor.
18:44Provém de duas figuras alegóricas
18:46dos túmulos florentinos de Lourenço
18:47e de Júlio de Médicis.
18:54Da mesma forma, o cotovelo levantado acima da cabeça
18:56pertence a um dos dois escravos de Miguel Ângelo
18:58do Museu do Louvre.
18:59O busto do outro escravo de Louvre
19:02e os seus músculos entrançados
19:04foram inspirados no famoso torso antigo
19:06do Museu de Belvedere, no Vaticano.
19:08Talvez um fragmento de um Hércules sentado.
19:11Este mesmo torso musculado curvado para a frente
19:13que tanto fascina o Miguel Ângelo
19:14foi retomado tal e qual
19:16no centro de outro conjunto de Bacon.
19:25Há uma recordação do mesmo torso do homem
19:27sentado na louça branca.
19:29O rochê de Hércules tornou-se uma retrete.
19:33Rodin inspirou-se no mesmo mármore antigo
19:35e a caricatura ou a piada popular
19:37atribuíram ao famoso pensador
19:39uma ocupação totalmente diferente.
19:42A fórmula definiu ironicamente o objeto
19:44como um trono.
19:46Bacon está consciente
19:48desta multiplicidade de sentidos
19:49pois colocou-o na mesma posição humana
19:52um dos seus papas
19:53com a sotaina levantada.
19:59Outra figura do Belvedere
20:02teve uma grande influência em Miguel Ângelo.
20:05A Lauconte
20:06descoberto em 1506
20:08e comprado imediatamente pelo Papa Júlio II.
20:11Esta expressão da dor
20:12que precede a morte
20:13e atenua tanto pela beleza das formas
20:15como pela expressão atormentada do movimento
20:17gerou entusiasmo e comentários
20:18de todos os artistas durante séculos.
20:21Gritos, gestos, contorções dos membros,
20:25meandros, anéis.
20:34Bacon afirmou que a ideia das sequências
20:36de três quadros
20:36lhe foi sugerida pelo cinema panorâmico.
20:38Também remetem para espelhos
20:42com três fases
20:42com os seus reflexos idênticos
20:44e desalinhados.
20:47Mas estes conjuntos de quadros
20:49inscrevem-se na continuidade
20:50de uma arte antiga.
20:52O tríptico,
20:52quadro religioso
20:53cujos painéis laterais
20:54se fechavam por vezes
20:55para taparem o painel central.
20:57Conheceu formas muito diferentes.
21:00O seu ritmo ternário,
21:01a sua simetria
21:02remetem simultaneamente
21:03para a Santíssima Trindade
21:04e para as três cruzes da crucificação.
21:06A do Cristo ocupa frequentemente
21:09o painel central.
21:11Testemunhas da cena,
21:13dadores ou santos protetores
21:15figuram nos painéis laterais.
21:21Três estudos para uma crucificação, 1962.
21:26Um Cristo recortado de cabisbaixo
21:28foi inspirado no crucifixo de Simabue
21:30que Bacon compara
21:31com uma espécie de verme rastejante.
21:34No centro,
21:34um corpo voltado e massacrado
21:36num colchão.
21:38À esquerda,
21:38duas personagens,
21:39testemunhas,
21:40voyeres
21:41ou carrascos.
21:46Crucificação, 1965.
21:49Outro corpo torturado,
21:50desventrado,
21:51pendurado pelos pés
21:52e desta vez situado no centro.
21:55À esquerda,
21:55um monte sangarente
21:56sobre um colchão.
21:57Uma mulher não observa a cena.
22:00À direita,
22:00duas testemunhas com panamás
22:02e uma espécie de carrasco musculado
22:03de braçadeira
22:04com uma cruz suástica.
22:12O tríptico implica relações
22:13mais ou menos complexas
22:14entre os três painéis.
22:15Mas para Bacon,
22:17estas relações não têm
22:18de induzir uma lógica
22:19narrativa imediata.
22:24O que Bacon quer eliminar
22:25na verdade é a narração,
22:26o drama.
22:28Duas figuras no mesmo quadro
22:29já contrariam uma história.
22:31Ele não queria que a história
22:32prevalecesse sobre o quadro.
22:35Daí esta acumulação
22:35de procedimentos
22:36para eliminar a intriga,
22:37para separar as personagens
22:38em painéis diferentes,
22:39para reduzir o cenário.
22:45As imagens são uma espécie
22:46de epifanias,
22:47instantes privilegiados
22:48onde uma situação cotidiana,
22:49um sonho acordado,
22:50um eco de linguagem
22:51se cristalizam,
22:52se condensam numa figura.
22:59Um homem,
23:00o pintor,
23:01entra em casa
23:01ao amendecer,
23:02bêbado,
23:03e medita quase a vomitar.
23:09Ou então,
23:11os corpos presentes
23:12parecem pertencer
23:13a um universo
23:13de literatura de terror,
23:14povoado de seres efêmeros
23:16ou malfeitores
23:16em perpétua metamorfose.
23:18Fluem,
23:19liquifazem-se,
23:20dissolvem-se,
23:21são apagados em parto
23:22ou amputados em esquadria.
23:26Às vezes,
23:26estamos num mundo
23:27de carrascos
23:27com torturas,
23:28ferimentos,
23:29membros arrancados,
23:31restos a sangrar,
23:32rostos atormentados.
23:34A referência à carne,
23:36à carcaça,
23:37ao cadáver,
23:39é permanente.
23:40E com efeito
23:41a pintura de Bacon
23:42é uma reflexão
23:43sobre a carne,
23:45sobre o sacrifício
23:45ensanguentado,
23:47sobre a violência
23:48da carne,
23:49mas sem religião,
23:51sem transcendência,
23:53sem misticismo.
23:55E a esta insistência
23:56no excesso
23:57não falta
23:57uma boa dose
23:58de humor negro.
24:06Mas parece sempre
24:07faltar o que daria
24:08um sentido final,
24:09o elemento narrativo.
24:11Esta lacuna
24:12desorientou o espectador,
24:13levando-o para o coração
24:14de um mito enigmático.
24:20Tríptico
24:21inspirado pela
24:22Oresteia de Esquilo,
24:231961.
24:26Na Oresteia,
24:27as vinganças familiares
24:28não param
24:28de originar homicídios.
24:30Um bocado
24:31de corpo mutilado
24:32numa estrada
24:32com múltiplas facetas.
24:34À direita,
24:35outro corpo
24:35sem cabeça
24:36enfrenta uma porta.
24:38À esquerda,
24:39um monstro voador
24:39que Bacon
24:40identifica como
24:40uma irínia,
24:41ou como
24:42uma euménide,
24:43divindades gregas
24:44que os romanos
24:44iriam chamar
24:45fúrias,
24:46que vingavam os homicídios
24:47ou as ofensas
24:48cometidas no seio familiar.
24:49O pintor
24:52representa-as várias vezes
24:53em diferentes quadros.
24:59Mais uma vez,
25:00a mitologia grega
25:01com uma variação
25:02filenta,
25:03mas irónica
25:03sobre Édipo
25:04e Asfins,
25:05inspirada em Ingras.
25:09Tríptico
25:09inspirado no poema
25:10de T.S. Eliot
25:11Sweeney Agonist,
25:121967.
25:14À esquerda e à direita,
25:15corpos
25:16entrelaçados em camas.
25:17No centro,
25:18vestígios de um
25:19crematroze
25:20num compartimento
25:21do vagão-cama.
25:23No painel da direita,
25:24no espelho,
25:24uma espécie de voyeur
25:25que contará talvez
25:26o ocorrido por telefone.
25:32O espectador
25:33não pode tentar
25:34reconstruir uma história,
25:35mas sim viver
25:35fisicamente a cena.
25:37O massacre dos inocentes,
25:39o retrato
25:40de Inocêncio X.
25:42Bacon pede
25:42que o olhar
25:43volte ao tempo
25:44da inocência.
25:47tenta invadir
25:50uma pintura
25:51de intensidades violentas,
25:52ou a pintura
25:53que já não fala mais
25:54com a razão,
25:54mas diretamente
25:55com o sistema nervoso.
26:01Três personagens
26:02numa sala
26:03mostram um espaço
26:04fechado,
26:05opressor.
26:06O mundo apagoso.
26:08Uma elipse
26:09de cor telúrica
26:10forma uma espécie
26:10de órbita.
26:13É a vista
26:13de um circo,
26:14ou a curva
26:14da Terra
26:15ou do Universo,
26:16ou um círculo
26:16metafísico.
26:18Neste puro espaço
26:19mental,
26:20um homem de costas
26:21imóvel,
26:22um homem diferente,
26:22provavelmente a gritar,
26:24e um homem de perfil
26:25irretorcido.
26:28Três figuras,
26:29sob o signo
26:29da metamorfose,
26:31imóveis,
26:32mas percorridas
26:33de violentas correntes.
26:36Os corpos
26:36são marcados
26:37pelas nóduas
26:37negras leprosas
26:38que remetem
26:39para a corrupção
26:40de toda a carne.
26:42Fundem-se
26:42com as suas bases
26:43ridículas.
26:45O busto
26:46torna-se louça.
26:48A louça
26:48transforma-se
26:49em carne.
26:51O sifão
26:51é como o vermo
26:52rastejante
26:53invocado por Bacon
26:53a propósito
26:54de Simabue,
26:55ou como um tentáculo
26:56do monstro
26:57de Locunte.
27:00Este tubo
27:00pode ser a personagem
27:01definitiva do tríptico.
27:03É uma bomba enorme
27:04que parece disposta
27:05a esvaziar
27:05os três painéis
27:06da sua substância
27:07e a evacuar o homem
27:08e todos os que o rodeiam.
27:10Este mundo
27:13aparentemente
27:14bem fechado
27:14puro espaço
27:15de contemplação
27:15plástica
27:16foge
27:17irremediavelmente.
27:21Três personagens
27:22numa sala.
27:23É um dos trípticos
27:23mais simples
27:24de Bacon
27:25e simultaneamente
27:25a cena
27:26de um estranho
27:26drama abstrato.
27:29No entanto
27:29as personagens
27:30não são figurantes
27:31anónimos
27:31de costas
27:32largas
27:32e musculado
27:33ombros redondos
27:34pescoço grosso
27:35e cabelos lisos
27:36penteados para trás.
27:37É Jorge Dyer
27:38tal como Bacon
27:39o mostrou
27:39dezenas de vezes.
27:41À direita
27:41há grande madeixa
27:42negra rebelde
27:43o nariz fino
27:44e aquilino
27:44o rosto magro
27:46e a órbita profunda
27:47de Lucien Freud.
27:50A personagem
27:51deitada no centro
27:51do tríptico
27:52poderá ser o próprio
27:53Francis Bacon.
27:57Três personagens
27:58numa sala.
27:58É portanto
27:59uma espécie
27:59de ex-voto
28:00de conjuração
28:01da morte
28:01de luta
28:02contra a destruição
28:03definitiva
28:03de uma constelação
28:04de amizade ideal
28:05num dado momento
28:06da história.
28:08O tríptico
28:09sete anos depois
28:10da sua gênese
28:11acabaria por ter
28:12um desfecho estranho
28:13como se fosse tirado
28:14de um romance fantástico.
28:19Em outubro de 1971
28:20no Grand Palais
28:21em Paris
28:22inaugurava-se
28:23uma importante exposição
28:23retrospectiva
28:24de Francis Bacon.
28:26Há já alguns anos
28:27que a relação
28:27entre Bacon
28:28e Dyer
28:28era tempestuosa.
28:31O pintor
28:31conseguira no entanto
28:32levar o seu amigo
28:33a Paris.
28:34Na véspera da exposição
28:35o corpo de George Dyer
28:36foi descoberto
28:37na casa de banho
28:38do seu quarto
28:38de hotel
28:39em Paris.
28:41George deverá
28:42ter misturado
28:43no difurso
28:43e uma grande
28:44quantidade de álcool.
28:47Vomitou sangue.
28:48Estava morto.
28:49Encarquilhado
28:50em cima da retrete.
28:52A maioria dos amigos
28:53de Bacon
28:53pensou que se tratou
28:54de um suicídio.
28:55Tríptico em memória
29:00de George Dyer
29:011971
29:02pintado logo
29:03após o drama
29:03retrata George
29:05no momento
29:05em que abriu
29:06a porta
29:06do seu quarto
29:07de hotel.
29:12Tríptico
29:13Agosto de 1972
29:14no ano seguinte
29:15também invoca George
29:17eco de uma fotografia
29:18tirada no ateliê.
29:20O painel central
29:21retrata um dos lutadores
29:22de My Bridge
29:23a sombra repetida
29:25de Dyer
29:25forma uma espécie
29:26de poça
29:26para onde parece
29:27esvaziar a sua
29:28substância de cor de pele.
29:33Tríptico
29:34Mai Junho de 1973
29:36ilustra ainda mais
29:37diretamente o drama.
29:39À direita George
29:40debruçado sobre um
29:41lavatório
29:41e a vomitar.
29:43No centro
29:43contorce-se de dores
29:44semi inundado
29:46por uma sombra negra
29:47com forma animal.
29:48Uma irínia
29:49que se prepara
29:50para o devorar.
29:52À esquerda
29:52o cadáver
29:53em cima do assento
29:53enganador.
29:55George Dyer
29:56na sua
29:56terrível agonia
29:57terá escolhido
29:58esta pós emblemática
29:59na qual o pintor
29:59já o imortalizara
30:01transformando o
30:02tríptico de 1964
30:03num sonho
30:04permonitório.
30:06Este suicídio
30:07que parece um
30:07quadro de Bacon
30:08era sem dúvida
30:09a derradeira revolta
30:10da criatura
30:10contra o seu
30:11criador.
30:12O ponto obscuro
30:13em que se juntava
30:13a história pessoal
30:14do pintor
30:15e os mitos
30:16sangrentes
30:17que sempre
30:17o haviam perseguido.
30:23tradução e opção
30:30ideias e letras
30:32do pintor
30:39do pintor
30:41Amém.
31:11Amém.